novembro 17, 2008

O Barreado e a Culinária do Paraná

O Barreado e a Culinária do Paraná
por Carlos Roberto Antunes dos Santos

As cozinhas estão em permanentes transformações. As culturas alimentares, seja qual for o tempo e o espaço geográfico, estão postas a situações de confrontos que podem levar a rupturas, diante da implementação de novas técnicas e formas de consumo e da introdução de produtos e do encontro e fusão dos mesmos, a partir de inovação e criatividade. Essas transformações da cozinha acabam sendo absorvidas ou “digeridas” pela tradição, que, em patamares seguintes, cria novos modelos, adaptados aos modelos convencionais precedentes. Nesse sentido, a ruptura, ao provocar certa revolução culinária, traz em seu bojo os traços de transição, ainda que marcados pelo tradicional.

As cozinhas locais, regionais, nacionais e internacionais são produtos da miscigenação cultural, fazendo com que as culinárias revelem vestígios das trocas culturais. Hoje, os estudos sobre a comida e a alimentação invadem as ciências humanas, a partir da premissa que a formação do gosto alimentar não se dá, exclusivamente, pelo seu aspecto nutricional, biológico. O alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria dinâmica social. Os alimentos não são somente alimentos.

Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois se constitui de atitudes, ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro. A dimensão histórica da sensibilidade gastronômica explica e é explicada pelas manifestações culturais e sociais, como espelho de uma época. Nesse sentido, o que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come, como se come e com quem se come. Enfim, esse é o lugar da alimentação na história.

No Brasil, historicamente, se cultivou a diversidade alimentar, numa síntese entre as culturas primitivas com a superposição de etnias das diferentes culturas, que, numa simbiose, formaram nossos hábitos alimentares e constituíram uma rica culinária. Nesse sentido, a memória gustativa acrescida dos saberes e sabores, das técnicas e práticas culinárias foram geradoras e formadoras das culturas regionais. Como resistência às cozinhas compartimentadas e cosmopolitas, a sociedade busca, cada vez mais, resgatar e valorizar, em nome da qualidade, as cozinhas locais e regionais, carregadas de culturas. Dessa forma, o local e o regional precedem o nacional e o internacional, fazendo com que a gastronomia revele a identidade desse conjunto de “Brasis”. Muitas vezes, essa valoração atribuída ganha destaque ao ponto de iniciar uma permanência, uma tradição que envolve, de forma artesanal, não apenas a reprodução do prato, mas, muitas vezes, a recriação de processo das condições em que o mesmo era preparado. Destarte, o ato de preparar um prato regional como “antigamente” ganha status nacional, principalmente impulsionado pelo contexto turístico. No âmbito do litoral do estado do Paraná, podemos mencionar o Barreado, um alimento memória, como exemplo desse processo.

Os temas da cozinha e da mesa regional paranaense revelam os tempos da memória gustativa, em que a preparação do Barreado se reveste de certa ritualização, assim como a seqüência e as maneiras como é servido à mesa. Dessa forma, a etiqueta à mesa se refere à representação simbólica regional, pois essa cozinha expressa a linguagem que traduz suas relações sociais.

A gastronomia paranaense reserva um lugar para todos, pois é diversa, a partir de uma riqueza étnica e cultural que inventou uma mesa ampla, com pratos produzidos pelos povos locais ou trazidos por diversos migrantes e imigrantes, num processo permanente de adaptação e readaptação.

Na verdade não existe uma cozinha tipicamente paranaense, pois o seu arcabouço constitui uma mescla de sabores os mais diversos, passando pela culinária local (luso-brasileira) e dando verdadeiros saltos culturais ao encontrar as cozinhas caipira e imigrante. Dessa maneira, o saber gastronômico local e regional, somado aos saberes externos, permitiu permanências e mudanças, sendo que alguns pratos se mantiveram e outros foram adaptados diante das circunstâncias do gosto e das práticas alimentares. Tudo isso é produto da dinâmica histórica das diversas regiões do estado do Paraná.

A culinária paranaense apresenta iguarias da cozinha típica local e pratos que utilizam alimentos incorporados à história e a cultura da alimentação do Paraná, como o pinhão, o milho, o feijão em suas diversas cores, a mandioca, o arroz, as carnes bovina, suína e o frango, o torresmo, o polvilho, a banana, que permitem pratos como: o barreado, a paçoca de pinhão, a quirera lapiana, o porco com a quirera de milho, o arroz-de-carreteiro, o feijão-tropeiro, a polenta com frango caipira, o lombo com pinhão, a costela campeira, o carneiro com farofa, o churrasco paranaense e inclusive a sobremesa do Bar Palácio em Curitiba, conhecida como “Mineiro de Botas”.

O ato que consiste em preparar um prato regional que tem tradição, história, ganha um status nacional quando ele se insere num contexto turístico. Tal é o caso do barreado, um alimento memória, considerado o único prato típico do estado do Paraná. Preparado desde a segunda metade do século XVIII no litoral paranaense, o barreado é uma iguaria feita à base de carne de boi cozida com condimentos, por volta de doze horas, dentro de uma panela de barro hermeticamente fechada com goma de farinha de mandioca. O nome do prato deriva da expressão “barrear a panela”, que se refere justamente ao ato de vedar a panela com goma de mandioca. Após o período de cozimento, a carne fica toda desfiada e é servida com farinha de mandioca, banana e cachaça de banana. A receita, disseminada através da tradição oral, possui algumas variações, principalmente no que se refere aos temperos adicionados à carne (alguns colocam apenas toucinho, outros colocam cheiro-verde em ramos amarrados, que são retirados antes do serviço, outros acrescentam tomates para “melhorar” a cor do prato, outros dizem ainda que a carne deva ser cozida sozinha, sem sequer a adição de água). Há também variações relativas à forma de preparo, pois muitos alegam que o barreado “original” é aquele em que a panela, depois de vedada, é enterrada em cova aberta com folhas verdes e, sobre ela, é acesa uma fogueira, técnica esta denominada “biaribi” ou “biaribu”, que era dominada tanto por ameríndios, quanto por africanos desde o final do século XVIII.

Os aspectos relacionados à origem do barreado permanecem obscuros, pois os municípios de Antonina, Morretes e Paranaguá, que reivindicam a “paternidade” do prato, comumente divulgam versões diferentes. Os antoninenses que possuem a mais forte tradição carnavalesca do Paraná, tendem a associar o barreado ao “entrudo”, uma festa profana, pagã, que antecedia o carnaval. O entrudo tem o seu sentido mais genuíno nos velhos ritos romanos, sendo depois praticado em Portugal, sempre caracterizado por certa permissividade, aí embutido o espírito crítico em relação às autoridades, à ordem e à moral vigentes. Já os morretenses tendem a identificar a origem do barreado com sua cidade, propagando que os tropeiros - personagens que integravam uma espécie de sistema privado de transporte de mercadorias na região Sul do Brasil - traziam do planalto, quando desciam o caminho da Graciosa, um cozido bem temperado que duravam muitos dias sem que se deteriorasse.

Sendo o barreado um alimento ligado diretamente ao litoral do Paraná, seu consumo é marcante na época das festas religiosas e nos festejos públicos, comemorações, feriados e divertimentos populares. Cumpre destacar que, em todos os finais de semana, as cidades litorâneas do Paraná se engalanam para receber os turistas que chegam de todas as partes para degustá-lo. Em Curitiba, alguns restaurantes de comida típica oferecem o barreado em seus cardápios em alguns dias da semana.

Impulsionadas pelo barreado, as cidades litorâneas se constituíram como capitais gastronômicas. Nesse sentido, o termo capital não implica necessariamente um espaço político-administrativo, mas caracteriza-se por uma rede, um território constituído, simbolicamente, pela “Santa Aliança” formada pela alimentação, história, tradição e turismo. Desse modo, a “rede” barreado, que constitui um lugar de história, aporta um espaço de consumo que alavanca o desenvolvimento regional, e outorga e fortalece uma identidade regional.

Do exposto, as cozinhas regionais do litoral paranaense se constituem como instrumentos de valorização cultural e de captação de recursos. A permanência dos hábitos alimentares “litorâneos” está diretamente ligada a uma territorialidade gastronômica marcada pelo barreado, criando espaços de lazer, de sociabilidade e, sobretudo, de comensalidade.

Na lógica do território criado, definido e ocupado pelo barreado, a identidade aí construída é propagada como uma forma de diferenciar uma especificidade, uma tipicidade. Quanto mais típico esse território ou essa rede, mais benefícios aporta para as cidades.

À luz disso, a festa do barreado e o território onde esse prato se produz fazem parte de uma vasta rede turística, que, alimentada pela história e pela tradição, transforma as cidades de Morretes, Antonina e Paranaguá em verdadeiras capitais gastronômicas.

Sendo a cozinha um microcosmo da sociedade e uma fonte inesgotável de história, é importante destacar que muitas das suas produções são consideradas patrimônio gustativo da sociedade. Por tudo que representa do ponto de vista da originalidade e da criatividade, o barreado tornou-se um prato típico, artesanal, carregado de simbolismo, de identidade local e regional, constituindo-se como um monumento, um bem cultural, um patrimônio imaterial.

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